Há exatos 10 anos, em junho de 2013, uma aparentemente inofensiva manifestação contra o aumento em R$ 0,20 do transporte público de São Paulo se desdobrou de tal modo que terminou parando o país. Não era, afinal, sobre os 20 centavos.
Em maio de 2023, os protestos de surfistas, ocorridos na esteira do trem de Lemoore, começaram com o texto corajoso, educado e contundente de Gabriel Medina nas redes sociais. Os dois outros brasileiros detentores de títulos mundiais, Filipe Toledo e Italo Ferreira, acompanharam o relator, ainda que com mensagens menos agudas, ao posicionaram-se em suas respectivas páginas, na mesma nuvem do tricampeão.
Os demais brasileiros no tour, além de alguns ex-atletas de WCT de outros países, entre os quais Julian Wilson, Jack Freestone e Michel Bourez, e o ainda ativo e contundido marroquino Ramzi Boukhiam apoiaram, com comentários, Gabriel. Em muitos casos, no entanto, notava-se o medo presente em mensagens contidas. Nada mais compreensível, sobretudo diante de uma entidade que não se mostra historicamente disposta ao diálogo com o contraditório.
Ainda não chegamos ao resultado final desse inédito e formal movimento contra aparentes erros de julgamento. Mas deixo a minha aposta:
Não é só pelos 6,5 décimos que, pelo menos na perspectiva dos juízes, faltaram para Italo vencer o americano Griffin Colapinto na etapa realizada no Rancho.
Ou, ainda, não é só pelo 1 centésimo que faltou para Gabriel vencer Ethan Ewing na disputa por uma vaga nas finais de 2023 quanto nos Jogos Olímpicos de 2024.
É, sim, sobre a possibilidade de surfar na elite de um esporte e ser recompensado de modo adequado pelas performances. É sobre entender a motivação das notas e encontrar indicadores para compará-las com as de adversários.
É sobre lutar contra um inexplicável enviesamento de critério, uma deliberada volta ao passado, que coincidentemente gerou como consequência a recuperação do protagonismo das duas mais tradicionais bandeiras do esporte.
É sobre, ainda, esperar que a nacionalidade de um surfista seja algo tão irrelevante quanto é, por exemplo, para o menino californiano que gritava “sick, sick!, depois de uma das inúmeras ondas surfadas no limite por Italo no Rancho.
É sobre a se opor à persistente e subliminar ideia de exotismo relacionada aos brasileiros no tour, mesmo depois dessa avassaladora imposição de títulos praticamente consecutivos (à exceção do bi de John John Florence) desde 2014.
É sobre a luta contra uma nuvem sutil de valores culturais, lamentavelmente endossada por alguns brasileiros, que ganha densidade quando, por exemplo, o post de uma celebrada revista americana associa, numa única mensagem, a educada e carta-protesto de Gabriel ao comentário de um hater de deep web com ameaças ao excelente Ethan Ewing. A associação dos dois fatos sugere um perigoso nexo causal – como se a ameaça tivesse sido provocada pelo tricampeão – e ainda reforça, ainda que de modo não intencional, um tom preconceituoso em relação ao brasileiro.
Não preciso ir muito longe para dizer, diante dos mass shootings quase diários nas instituições de ensino dos Estados Unidos, que violência não é coisa exclusiva de Pindorama. O próprio Gabriel, aliás, já foi ameaçado e sofreu com o ódio das redes.
Logan sai dos trilhos
É sobre, ainda, resistir à autoritária carta publicada pelo estadunidense Erik Logan, CEO da WSL, na noite de terça-feira. Em vez ampliar a escuta, identificar possíveis lacunas em sua gestão e buscar diálogo, o americano não apenas afirma irresponsavelmente que as mensagens de protesto dos surfistas incitaram “diretamente” as ameaças de criminosos de web como também sugere que os três campeões do mundo, que se manifestaram, poderão ser punidos com sanções pela entidade.
(É preciso, aqui, separar as coisas: ameaça de morte é crime sério, que demanda investigação imediata e prisão dos responsáveis. A gravidade do fato não dá à WSL o direito de associar diretamente o comportamento criminoso às mensagens legítimas dos surfistas. A carta de Gabriel não sugere qualquer ideia de violência. Haters, por outro lado, não precisam de qualquer pretexto para fazer ameaças na web.)
Se o tema não é o mesmo, a reprimenda de Logan veio em tom muito semelhante à infame mensagem de Javier Tebas, presidente da LaLiga, empresa que organiza o Campeonato Espanhol de Futebol, ao brasileiro Vini Jr. Uma das acusações do americano, inclusive, é a mesma: não procurar formalmente a entidade antes de fazer a reclamação pública nas redes. E a nacionalidade dos ameaçados, idem.
(Aqui, outro disclaimer: embora o tom da carta de Logan seja bastante semelhante ao post de Tebas, no caso do surfe o tema em questão não tem qualquer relação com racismo, objeto das reclamações de Vini Júnior refutadas pelo espanhol. Não seria justo associar Logan a racismo.)
Ainda assim, Logan conseguiu o que parecia inimaginável: subir a pressão da crise a níveis insuportáveis quando ela já estava perto do fim. Não sei que agência de PR ele ouviu para tomar essa decisão infeliz, mas uma rápida olhada no noticiário das últimas semanas, com a enorme crise de reputação da LaLiga, bastaria para evitar isso.
O desastrado executivo enterra, ainda, todo o discurso ESG (no caso, especialmente o de governança) que desejava colar à WSL. Responsabilizar surfistas por ameaças feitas por haters escondidos na web e tentar calar, com ameaças de sanção, aqueles que se manifestam sobre possíveis erros de julgamento são erros primários.
O libelo do tricampeão
De volta aos protestos, antes que algum colonizado acredite que eu falo da existência de um complô, antecipo: não, não existe complô. Associar as falhas da WSL a teorias conspiratórias só favorece a eternização dos erros de julgamento.
O que existe é cultura, algo bem mais complexo.
A carta de Gabriel tem alguns pontos que merecem reflexão: “falta de clareza e inconsistência na definição das notas”, a equivocada valorização de um “surfe simples e com transições incompletas” e o abandono da “progressão e da variedade”. São questionamentos legítimos, e a WSL estava no caminho de dialogar com isso.
Ele vai mais longe, ao dizer que o problema, quando levado pelos treinadores à WSL, tem sido tratado de forma equivocada, defensiva, sem exemplos adequados como justificativa. E disse que isso ameaça o interesse das marcas e do público pelo esporte.
Fazer uma crítica tão organizada e contundente à entidade que organiza o circuito mundial não é fácil, sobretudo se entendermos que se trata de uma empresa privada, com dono, e não uma associação que defende apenas o interesse dos surfistas.
A liga tem apenas 35% do volume de seguidores de Gabriel na rede social mais usada no surfe – 3,7 milhões contra 11,1 milhões no Instagram – mas essa vantagem popular não o protegerá das sanções já antecipadas na infame carta de Logan.
De todo modo, o tricampeão parece disposto a encarar esse mar pesado.
Entre todos os comentários do post do protesto, o que me chamou mais atenção foi o de Julian Wilson. Excelente surfista, principal rival de Gabriel nos primeiros anos, pivô de um julgamento controverso (Portugal, 2012) e legítimo representante da excelente escola australiana, Wilson foi direto, marcando Erik Logan no post: “Se você perde o respeito dos surfistas, você perde o seu produto. Sempre foi assim. Você pode não fazer muito dinheiro, mas proporcione o melhor espetáculo.”
A leitura do australiano é precisa. O protesto pós-Lemoore não é o início, e sim um desdobramento previsível de uma insatisfação crescente de alguns surfistas com os critérios de julgamento – que foi bastante ampliada este ano, com a consolidação da mudança de critério. Logan está matando a sua galinha muito antes de ela saber como fazer para chocar ovos de ouro.
Antes da autoritária carta de Logan, a WSL havia soltado um comunicado ponderado, com defesas como “integridade e justiça” e o encorajamento de um “debate construtivo” sobre a evolução do esporte. No texto, menciona ainda o fato de os surfistas receberem os critérios de julgamento antes de cada dia de competição e dizem que vão “manter a comunicação para sempre aprimorar o esporte e a transparência entre juízes, atletas e regras de competição”.
Pelas reclamações recorrentes e, agora, públicas, não me parece que o briefing pré-competição esteja sendo minimamente preciso. E vou além, sem querer, aqui, fazer qualquer juízo de valor sobre a ética dos juízes. O que falta, antes de tudo, é transparência – não apenas para os surfistas, mas também para o público.
Assim, eles explicariam de modo claro, por exemplo, como bem lembrou Pedro Robalinho, durante o programa SurfeTV, por que os cinco juízes soltaram as notas rigorosamente ao mesmo tempo na onda que deu a vitória a Ewing contra Gabriel, num conjunto de pontos preciso, que geraria um empate técnico e a vitória do australiano no critério de desempate da melhor onda.
Quem gosta de surfe sabe o caminho possível para mudanças. Julian, Gabriel, Filipe, Bourez e muitos defendem um critério que privilegie a óbvia combinação do conjunto de manobras progressivas com uma linha harmônica, entre transições limpas.
Esta seria a evolução esperada se a WSL não tivesse interferido e alterado o curso natural do esporte: um julgamento que exigisse, por exemplo, linhas limpas de Italo entre as manobras; que cobrasse de Ethan abordagens em zonas mais críticas da onda, com manobras mais impactantes; que mostrasse a Gabriel que os arcos de frente para onda podem, sim, ser mais bem desenhados com a borda, como os de Yago Dora.
De todo modo, o comunicado da WSL parece ter sido completamente rasgado por Logan. O que parece é que o gabinete de crise não conseguiu gerir as ameaças virtuais de haters de deep web e, assim, foi levado a cometer o inexplicável erro de conectá-las irremediavelmente aos protestos ponderados e legítimos de seus surfistas. O erro é não perceber que não importa a mensagem: o ódio infelizmente sempre estará vivo na web – no surfe, no futebol ou em qualquer outro canto menos iluminado.
Pequenas notas sobre o evento
Que me perdoem os leitores afeitos a análises mais extensas do evento, mas, como se diz nas redações, os fatos sempre se impõem. E, desta vez, o fato é o protesto. Abaixo, seguem breves considerações sobre a disputa na onda mecânica do tour.
Sim, Griffin Colapinto e Ethan Ewing brilharam intensamente na piscina e, claro, isso nada tem a ver com as aparentes lacunas de julgamento da WSL.
O campeão e novo líder do WCT, Colapinto, não para de evoluir, com um surfe preciso, potente e, diferentemente de Ethan, também com notas progressivas. Aponta, agora não apenas pelas performances, mas também pela posição no ranking, como favorito cada vez mais forte para vencer as finais em casa, Trestles. Filipe que abra o olho.
O americano venceu o Rancho, no entanto, sem ser o melhor das finais. Ethan, que ficou na semi, estava mais encaixado, assim como Italo, o vice-campeão. Os três, de todo modo, evoluíram brutalmente na onda em relação a anos anteriores, mesmo encontrando caminhos distintos para encaixar na onda.
O potiguar chegou a etapa pressionado por resultados e tendo que lidar com questões pessoais, mas conseguiu – coisas que só ele é capaz de fazer – transformar isso num motor afeito ao trem do Rancho. Surfou com velocidade, potência e variedade impressionantes. Para mim, para Gary “Kong” Elkerton e para muita gente, ele venceu a etapa. De todo modo, saiu feliz por ter, ele mesmo, voltado aos trilhos.
Filipe, o outro semifinalista, ainda é o melhor surfista do Rancho, ao lado de Gabriel, mas resolveu “apagar” quando precisava de apenas um 7 na direita, sua especialidade, para despachar Colapinto. Surpreendentemente caiu no meio da onda, não sei se por cansaço, por pressão ou por uma outra fatalidade qualquer. Suas performances de 2021, na direita, seguem sendo, de minhas perspectiva, a maior demonstração técnica já vista na piscina. Este ano, ninguém, nem ele mesmo, igualou aquele surfe.
Gabriel perdeu nas quartas para Ethan em mais uma desastrosa decisão do painel de juízes da elite. Ele não fez a sua melhor etapa na história do Rancho, mas é tão forte naquela arena que surfou com sobras para vencer. Gabriel consegue combinar performances boas para os dois lados – acho até que a sua linha na direita, que única colocações precisas no tubo, ataques quase sempre na zona mais crítica da onda e boas finalizações – foi muito mal avaliada durante todo o evento.
Mas a maior polêmica ficou com a esquerda, na comparação com a melhor onda de Ethan. O tricampeão, mesmo com uma sucessão impressionante de manobras progressivas de alto risco, não passou de 8,60 no crivo dos juízes. A decisão do painel ficou muito, muito distante do senso comum em relação aos critérios técnicos.
Para compensar a modorrenta onda mecânica, o novo formato garantiu ao evento uma carga dramática em função da ampliação da obrigação de vitória em disputas com apenas dois surfistas. E ganhou quem foi mais exposto a esse desconforto: Colapinto e Italo passaram pela despropositada repescagem noturna, em que atletas tinham dificuldades até para identificar a curva da onda. Saíram encascorados para as finais.
Ainda sobre a repescagem, uma última nota rápida: depois de longo inverno, Kanoa Igarashi fez um surfe excelente à noite. Não passou às finais por um detalhe.
De volta aos 20 centavos
Antes do fim, é bom lembrar das consequências dos protestos de 2013. A história nos mostra que questionar a legitimidade das instituições com movimentos de ruptura, em vez de criticar seus gestores e seu funcionamento, nem sempre é boa estratégia. Portanto, nas manifestações dos surfistas contra o julgamento, é preciso brigar por executivos mais competentes, pelo aprimoramento de critérios, por mais transparência e por justiça. Mas seria um erro, mesmo para o leitor radical, desejar o fim da World Surf League. Afinal, os novos donos podem sempre ser piores.
Que El Salvador seja a redenção do surfe. No mundo ideal, sem Logan. Mas, diante da postura da atual gestão da WSL, possivelmente sem Gabriel Medina.
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